sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

SÓU E PHORTES (um romance) 3

DE COMO TODA ESSA NABA COMEÇOU (em ópera)

(entra o PLEBEU, com um violão e passa a tocar; pára um instante e olha para o público)



PLEBEU

O que é uma ópera?

(volta a tocar e fala enquanto toca)

Impõem-nos que ópera seria um drama cantado, com orquestra ao lado... de quando em vez travam-se diálogos ou se declama cantos, acompanhados sempre por um instrumento musical... um drama lírico... logo, um drama musical.

Mas (levantando-se) descobrimos que, na verdade, ópera é uma oração:

Uma oração triste... que arrepia os mortais e entusiasma os anjos...

Sim... os anjos que, não raro, acompanham a melodia e aplaudem, apaixonados, com suas asas.

Provemos seu sabor.

(fica em silêncio, abre um sorriso para a platéia)

Temos a honra de lhes apresentar a opereta...





Sóu & Phortes





... que tem por pano de fundo o terceiro dia da festa de Teobaldo, o Bravo, quando Phortes, seguindo o vão conselho de Henrique, chora em uma pequenina praça a desilusão do amor perdido na distância do palanque de dois dias atrás...



DOCE INTRÓITO



CAVALEIRO

Quando Phortes seus olhos levantou

Não tardou se desfazer o sentimento

Que lhe fazia viver tanto tormento:

Solidão.

Sóu, espalhafatosa, cruzara a praça

E sem graça, naquele olhar perdeu

Sua história, um passado que era seu:

Solidão .

Ele, um cavaleiro honrado,

O futuro renegou.

Ela, de coração ensimesmado

Ali na rua, repensou.

Destinos presos, manhã solta

Conheceram, cada qual, sua parte outra.

‘Cá comigo’ – estendeu a mão a bela.

Ele sorria... entregou a destra a ela.

Meio-dia, a cidade parada, estava quente.

Uma da tarde, mãos dadas apenas, se olhavam somente.

Duas da tarde, eles parados, a cidade insistentemente

Os olhava, curiosa.

No fim daquela tarde rosa

Phortes soube que ambos eram...

Sóu, dona foi da certeza: sim, eram

Uno, eterno e belo

Uno, eterno e belo, juntos os dois

Porém propôs:

‘Provemos desse amor e se desse amor, algo é completo.’

E de coragem repleto, Phortes bramiu:

‘A Noite há de nos dizer!’





a opereta, enfim...







ATO I



SÓU DESAFIA A NOITE EM PLENA RUA



SÓU e PHORTES

Se desejávamos o porquê

Por que razão a afrontamos?

Se só queríamos saber

A desafiamos por quê?



(silêncio... som de passarinhos e latido de cães - som de rua tranqüila)



SÓU

Nesta tarde o que nos resta

É aguardar nascer a Lua

Sentar sorrindo à rua

E descobrir tão-só a nua

Face da Vida

Forças da Noite



(silêncio... crianças que brincam, som vai sumindo...)



SÓU

É conhecer que não presta

Tanta verdade crua

Que aflige, não recua

E, fria e lúcida, nos rotula



CORAL (representando a Noite)

Fracos diante de mim

Frágeis perante os céus

Vulneráveis debaixo do véu

Porque reagir não sois capazes



(longo silêncio... começa música clássica que vai ganhando força, devagar)



SÓU

O vento passa e nos ensina:



(passa o Vento, correndo e sussurra)



VENTO

‘Olhem o rosto um do outro, já basta!’

‘Esqueçam do mundo lá de cima.’

‘Fruam o gosto dos lábios outro do um... apenas.’



(música atinge o seu ápice e pára de repente... começam os tambores)



SÓU

A aurora levanta e nos aponta

Mas não é ela legítima!

É simplesmente ciumenta

Pois que afronta a paz

Que nos empresta a indiferença

À tristeza

De nos saber...



(tambores altos e, mais alto que os tambores, SÓU)



SÓU

Sim sim sim



(penumbra, de repente... junto com o silêncio. Sóu cai no chão e o som vai aumentando)



CORAL

Fracos diante da Noite

Frágeis perante os céus

Vulneráveis debaixo do véu

Porque reagir não sois capazes

Porque reagir não sois capazes



(num pulo, Sóu se levanta e de forma rebelde)



SÓU

No entanto vivos, Sóu e Phortes

No entanto livres, Phortes e Sóu

Porque juntos um do outro



(Sóu sai de cena, debochando da Noite, ao som de carnaval. Finda a música)



CORAL

Porque são mulher e homem

Porque são mortais

E como tais

O amor consome...

O sonho arrasta...

Deus admite



ATO II

PHORTES DESAFIA A CRUZ EM CAMPO DE FLORES-DE-LIS





PHORTES

Ei, tu!

O amor me alcançou

Da forma que temias.

Eu, que cá vim por tanto,

Portanto te peço:

Te admitas vencida

E do teu alto me abençoes

Nem que soe

Falso.

Trago comigo

(Sóu sai por detrás de Phortes)

O rosto amado

Meu ombro amigo

Teu poder quebrado.



CORAL (representando a Cruz)

Pobres acham que podem

Fracos crêem que podem

Nada é o que são.

Se os quero distintos

Distintos serão

Minha benção?

Não.



PHORTES

Ei, tu

Arguciosa que há pouco norteavas

Caminho puro e de pó

Tenhas dó

Do que une Sóu e Phortes!

Compreendas, ao menos

E terás consolo

Porque voltar atrás, senhora, não farei.

Porque o Amor de Phortes contém

Mais que tua benção

Mais que tua insolência

Mais que tua permissão:

Possui a convicção

De Sóu.





CORAL

Pobres acham que podem

Fracos crêem que podem

Nada é o que são.

Se os quero distintos

Distintos serão

Minha benção?

Não.





PHORTES

Ei tu,

Reflexo da cegueira,

Queiras ou não queiras

Perder-me-ás para sempre

Não te defenderei mais

Entrego-me a paz

Qu’o colo de Sóu mo traz

Porque somente Sóu quem faz...



CORAL (interrompendo)

Pobres acham que podem

Fracos crêem que podem

Nada é o que são.



PHORTES

Pobres sei que somos

Fracos não mais

Nada te propomos

Teu poder, Senhora, aqui jaz.



CORAL

Cavaleiro, não faça

Graça

Do poder da Ordem

Tu e Sóu não podem

Não devem, nem vão

Consolidar esta união

Minha benção,

Jamais terão.



SÓU

Escute, meu bem:

Quem lá vem?



VENTO

‘Olhem o rosto um do outro, já basta!’

‘Esqueçam daquela do altar.’

‘Fruam o gosto dos lábios outro do um... apenas.’

‘Não haverão de os separar!’



PHORTES

Não acreditas no que digo?

Pouco importa,

Não mais te sigo!

Sim, somos frágeis...

Sim, somos pobres...

Mas, somos ágeis

E somos jovens

Podes até não permitir...



SÓU

Mas hás de um dia cair!



PHORTES

E não serei eu a te levantar

Lembrarás com pesar

Do instante maldito...

Em que me disseste ‘não’



CORAL

Ameaças... ameaças

Ó, que medo! (irônica)

Melhor pensando, lhos concedo

A MINHA MALDIÇÃO!

Concedo-lhes então

A MINHA MALDIÇÃO!



(Phortes e Sóu saem fugindo e rindo)

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