quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

SÓU E PHORTES (um romance) 2

A VISITA



Veio-lhe no sonho – parecia tão real! – a imagem de sua mãe entregando-lhe um frasco de perfume com cheiro que não lhe era estranho: era o odor que lhe invadia as entranhas quando, ao desferir o golpe fatal no inimigo, sentia a primeira gota de compaixão. Gelou-lhe o sangue que percorria o corpo na lentidão de seu coração sem pressa.
Com o dorso arrepiado e um pesar no peito, acordou na lembrança da mãe morta. Procurando o cavalo, olhou em volta e viu, contra a fogueira, o vulto de um homem (?) sentado, fitando-lhe. Esfregou os olhos, no sincero desejo daquilo haver sido mera impressão. Não era.
Procurou a lâmina sob a sela, agarrou-a e, num pulo, tentou erguê-la em ataque ao mal-vindo visitante. Eis que a arma se fez mais pesada que nunca, enquanto o sujeito, inerte, contemplava o gesto ridículo do bravo.

PHORTES (em prosa)

Por Deus! Quem és?

BICHO (rindo)

Ousas carregar nos lábios
O Parafraseado por tidos sábios...
Tão cantado no liceu...
Aquele inimigo meu
Que, há tanto, te esqueceu!

PHORTES (em prosa)

Quem és? O que queres?

BICHO

Não sabes o que quero?
Ser-te-ei, então, sincero:
Tu mo dás com freqüência
Na Daquele ausência
Nessa tua vida pobre,
Violenta e nada nobre:
A dor de um filho quando,
Com o regresso do pai sonhando,
Desalenta-se sobre a mortalha
Na volta da tropa da batalha;
Inocentes sonhos de quem tem nada
Destruídos pela lâmina enferrujada
Das tuas vis razões;
Sorrindo em matar quem nem conheces,
Diriges ao deus do Mau mil preces
Por motivos que ignoras,
E nem por isso coras!
Por causas que tuas nem são,
Defendes o luxo e a traição
E perpetuas a maldição...

PHORTES (em prosa)

Vindes, então, buscar-me a alma?

A platéia de almas penadas, que pela primeira vez Phortes pôde ver, aguardou ansiosa a resposta do Estranho.

BICHO

Não serás desforçado
Pois que és por mim amado.
Nobre soldado do terror,
Devo, sim, a ti louvor!
Vim te oferecer meu mundo.
Abandona, assim, esse teu imundo.
Ser-me-ás um capataz!
Prove-me, porém, antes ser capaz:
Nessa vida sem pretensão
Deixastes, perdido, um coração.
Foi há pouco tempo atrás,
Quando não a desejaste assaz.
Sentias-te, como nunca, feliz.
Saiba, pois, que ela também o quis.
Mas achastes que pro amor não estavas pronto
Partistes a galope, sem qualquer confronto.
Sei, meu filho, que tua alma ardia
Mas era a moça quem mais sofria:
Chorando as mágoas para um colibri
Eis que era eu que o era ali
E, pela dor dela, sorri.

PHORTES (em prosa)

Só nela penso desde então! Do meu arrependimento tiro forças para não voltar e, nem que por um único instante, revê-la. 

Sobre Phortes ventou a lembrança de quando, covarde, fugiu.

"Perante a cruz que carrego ao peito, eu juro
Manter-me vivo só para ti, meu bem
Seja feliz de alguma forma, mas prometa
Sobreviva linda para mim também"

Fitou, perdido, o escapulário que fizera sua mãe, agora prova de sua covardia.

BICHO

Phortes, és um homem
De luxúria sentes fome,
Mas distingas, não confundas,
Ou o amor será tua tumba!
Tens que saber
Só desejar prazer.
Deves, sim, voltar,
Nela, enfim, descansar
E fazer-lhe um filho
Um futuro maltrapilho!
O teu legítimo sucessor
Que não saberá o genitor:
É que partirás ao fim da noite
Na alma da nobre, um novo açoite.
Assim, tornar-te-ás forte
E a mim, um leal suporte:
Meu mensageiro da morte.

PHORTES (em prosa)

Vens me oferecer poder e imortalidade! Para isso devo destruir aquilo de que mais belo desejei nesta vida de horrores? Se tua proposta recusar, levar-me-ás contigo para a ardência de teu Reino, feito escravo?

BICHO

Se a mim disseres ‘não‘
A ti não haverá perdão!
Por estes vales sobrarás
Eu não te quererei mais!
E sabes que O do Bem
Desdenha-te também.
Basta continuares como és
E o mundo cairá a teus pés.
Aceite a oferta que te ofereço
E toda riqueza será só o começo.
Vá até aquela,
E de forma singela,
Prometa-lhe todo o teu amor
Mas lhe empreste toda a dor:
Sem te acanhar, suma!
Perca-te em meio às brumas!
O destino, depois, tudo arruma...

PHORTES (em prosa)

Deves dar a ela, então, sossego após, nem que seja na morte. Ao rebento, conformismo e bondade. Assim, ser-te-ei vassalo.

BICHO

Negociar comigo ousas...
(furioso)
Tolo!
Tua vida em mim repousa!
Cala-te, faça o que digo
E em mim encontrarás abrigo.
Deita-te, durma agora!
Amanhã, em primeira hora,
A galope, rume ao Norte
Ao encontro de tua sorte.
Este cão contigo vai:
Será tua lembrança minha,
Teu novo pai.

PHORTES (em prosa, apontando para os espíritos)

E quanto a estes pobres?

BICHO

Não mais os terás por perto.
Declaro todos libertos.

PHORTES

Por tempo tanto, sem algum amigo...
E estes a viajar comigo...

BICHO

És predisposto ao Mau:
Começas, a mim, falar igual!
Durma agora, desgraçado,
Ou amanhã estarás cansado.

PHORTES

Sed fiat voluntas tua.

Phortes repetiu a frase de Cristo, e que sempre respondia aos seus senhores num gesto de respeito. O Bicho arrepiou-se.

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