__ Daí o cara trai seu sentimento e, ainda quente seu corpo adúltero, esbraveja arrependido: “da displicência de um sopro quente ao pé-do-ouvido, murmúrios controversos soam paixões ímpias em realidades dispersas. Ah! Fraca razão, que abandona este reino dominado pelo amargo prazer e pela doce ilusão de que nada acabará após esse ritual selvagem. Hás de voltar e punir-me, com um vazio interno e eterno, até a próxima tempestade hormonal, nesta terra de carne, suor e gozo”.
Continua, agora irritado, o Louco:
__ Essa foi a verdade que reinou por certo tempo, cara. Na vida não existe mais essa fórmula de um mais um igual a dois. Um homem pode ser feliz (tem até mais chance, aliás) se estiver sozinho no meio do mato e não junto de uma mulher que não nasceu com ele, só conheceu depois de grande, sentiu tesão e agora vai ter que comer o feijão de arroz pra sempre. Meus irmãos, a vida não é tão simples. E vem esse piá erguendo a bandeira da ORDEM no mundo.
Pedro, intimando o Louco:
__ Fala essas coisas pr’esses caras aí; mas não para mim, meu amigo. Tu falas essas putarias todas, mas não sabes tu que enquanto houver um homem amando uma mulher e uma mulher amando um homem, Deus ainda confiará nestas plagas?
__ Justo. Estás, no mínimo, nas garras d’uma fêmea. No fundo (sabes disso) tens medo de um dia acordar, descobrir que por ela não sentes mais nada e que perdesse tua juventude pela desconhecida que ainda dorme ao teu lado.
__ Não confundas tudo, seu louco. Ser otimista ou não nada tem a ver com quem eu durmo ou deixo de dormir. Eu apenas creio que o mundo ainda tem solução!
__ Mas tem mesmo! Ele está por vir...
__ Quem? Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse? – tira sarro Seu Carlos.
__ Chame como quiseres... Cavaleiros do Bem, do Mau, Diabo... são todos a mesma coisa... – afirma o Louco.
__ Esse papo está me deixando muito deprimido, 'cês me dão licença. – sai cambaleando o Bêbado. Ao sair da porta do bar, ouve-se o som de uma freiada de carro e dois gritos. Morre o escravo da Maria Augusta. Ninguém sequer levanta.
__ Menos um. – um fala.
De repente entra no bar uma figura toda de branco, pálida. No fundo, toca ‘Rigolleto’. É o espírito do Bêbado, recém morto e assustado.
O Louco olha para ele e, sem nenhum ar de surpresa, questiona:
__ Alguma mensagem dos meus?
__ Que nada! É que descobri o sentido de tudo e resolvi voltar para lhes contar.
__ Somos todos ouvido. – diz Seu Carlos.
A alma penada responde:
__ Reza mansa a geometria que mesmo retas paralelas no infinito se encontram. Ora, assim não existem caminhos opostos, mas entrelaços universais. Sonhos, desencontros, aspirações... são meros sopros cósmicos, iluminados pelas estrelas – agora minha casa, que fazem da vida não simples coincidências, mas destinos traçados na aurora dos tempos (onde nasce o infinito). O Infinito, supérfluo quando o Amor... não, Amor não, não ouso... poesia é tempero neste “banquete lácteo”. Fome! Vou atrás de Maria Augusta. Tchau. – parte pela porta, enquanto o Poeta bate palmas.
__ O cara deve ter ido para o céu dos bêbados! – diz Pedro.
__ O céu dos bêbados é aqui, meu amigo. – respondeu o Louco.
__ Diga-me então, Louco, o que é o paraíso?
__ Assim como Deus, cada um tem o seu. Jamais entraremos num consenso.
__ Concordo. Mas como vês o teu? – Pedro curioso.
__ Sobre meu paraíso, entrei em acordo comigo mesmo: deveria ser algo fácil de se atingir. Convencionei que não haverei de aguardar a dita “grande passagem” para ter acesso a este reino abençoado por minha fome de prazer. Aliás, muito pelo contrário, é tão simples...
__ Fala, porra! – irrita-se Seu Carlos.
__ Tá! É o seguinte: meu paraíso é uma sala com um colchão cobrindo o chão. Sobre ele, uma mulher – não importa o cheiro, a cor, o gosto – uma mulher. Ali ficaríamos, descobrindo-nos à luz de centenas de velas espalhadas pela sala ou, numa eventualidade...
__ Teu paraíso tem eventualidades? – pergunta o poeta.
__ Cala a boca. Deixa eu continuar: daí, se por algum acaso não houver velas, basta a luz da televisão, muda, fora do ar. As paredes tocando The Doors. Ficamos ali durante semanas.
__ Jantando palavras de amor? – torce, então, o poeta.
__ Não. Nada. Talvez. Sabe como é: o homem nasce bom, a sociedade o corrompe e a mulher prova que ele é burro. Então em meu paraíso somos sós, a ausência do sol e suor. Nada de palavras. Eis o meu paraíso.
Pedro, como se perguntassem:
__ O meu paraíso fica num lugar à beira do mar. Talvez na praia. Quem sabe até nas pedras, sob o sol. Lá, a língua oficial é o Francês, muito embora não precise usar palavras. Tu só precisas pensar, desde que sincero, e o outro logo te entende. Lá, o homem não coloca a mão, nem tem acesso com forma sequer de preconceito - tens que abdicá-lo se quiseres ali ficar. Chegar até. O fundo musical é o mar batendo nas pedras, quando muito o vento cheio de malícia sussurrando a paz. Lá também não se pode julgar.
Deus, cansado daquela corja de egoístas que, convenha-se, está abusando dos assuntos respeitantes somente a Ele, manda um raio que os faz calar para sempre...
(07.12.2001)