segunda-feira, 19 de julho de 2010

O LOUCO, O POETA, O BÊBADO E PEDRO (3/3)

__ Daí o cara trai seu sentimento e, ainda quente seu corpo adúltero, esbraveja arrependido: “da displicência de um sopro quente ao pé-do-ouvido, murmúrios controversos soam paixões ímpias em realidades dispersas. Ah! Fraca razão, que abandona este reino dominado pelo amargo prazer e pela doce ilusão de que nada acabará após esse ritual selvagem. Hás de voltar e punir-me, com um vazio interno e eterno, até a próxima tempestade hormonal, nesta terra de carne, suor e gozo”.

Continua, agora irritado, o Louco:

__ Essa foi a verdade que reinou por certo tempo, cara. Na vida não existe mais essa fórmula de um mais um igual a dois. Um homem pode ser feliz (tem até mais chance, aliás) se estiver sozinho no meio do mato e não junto de uma mulher que não nasceu com ele, só conheceu depois de grande, sentiu tesão e agora vai ter que comer o feijão de arroz pra sempre. Meus irmãos, a vida não é tão simples. E vem esse piá erguendo a bandeira da ORDEM no mundo.

Pedro, intimando o Louco:

__ Fala essas coisas pr’esses caras aí; mas não para mim, meu amigo. Tu falas essas putarias todas, mas não sabes tu que enquanto houver um homem amando uma mulher e uma mulher amando um homem, Deus ainda confiará nestas plagas?

__ Justo. Estás, no mínimo, nas garras d’uma fêmea. No fundo (sabes disso) tens medo de um dia acordar, descobrir que por ela não sentes mais nada e que perdesse tua juventude pela desconhecida que ainda dorme ao teu lado.

__ Não confundas tudo, seu louco. Ser otimista ou não nada tem a ver com quem eu durmo ou deixo de dormir. Eu apenas creio que o mundo ainda tem solução!

__ Mas tem mesmo! Ele está por vir...

__ Quem? Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse? – tira sarro Seu Carlos.

__ Chame como quiseres... Cavaleiros do Bem, do Mau, Diabo... são todos a mesma coisa... – afirma o Louco.

__ Esse papo está me deixando muito deprimido, 'cês me dão licença. – sai cambaleando o Bêbado. Ao sair da porta do bar, ouve-se o som de uma freiada de carro e dois gritos. Morre o escravo da Maria Augusta. Ninguém sequer levanta.

__ Menos um. – um fala.

De repente entra no bar uma figura toda de branco, pálida. No fundo, toca ‘Rigolleto’. É o espírito do Bêbado, recém morto e assustado.

O Louco olha para ele e, sem nenhum ar de surpresa, questiona:

__ Alguma mensagem dos meus?

__ Que nada! É que descobri o sentido de tudo e resolvi voltar para lhes contar.

__ Somos todos ouvido. – diz Seu Carlos.

A alma penada responde:

__ Reza mansa a geometria que mesmo retas paralelas no infinito se encontram. Ora, assim não existem caminhos opostos, mas entrelaços universais. Sonhos, desencontros, aspirações... são meros sopros cósmicos, iluminados pelas estrelas – agora minha casa, que fazem da vida não simples coincidências, mas destinos traçados na aurora dos tempos (onde nasce o infinito). O Infinito, supérfluo quando o Amor... não, Amor não, não ouso... poesia é tempero neste “banquete lácteo”. Fome! Vou atrás de Maria Augusta. Tchau. – parte pela porta, enquanto o Poeta bate palmas.

__ O cara deve ter ido para o céu dos bêbados! – diz Pedro.

__ O céu dos bêbados é aqui, meu amigo. – respondeu o Louco.

__ Diga-me então, Louco, o que é o paraíso?

__ Assim como Deus, cada um tem o seu. Jamais entraremos num consenso.

__ Concordo. Mas como vês o teu? – Pedro curioso.

__ Sobre meu paraíso, entrei em acordo comigo mesmo: deveria ser algo fácil de se atingir. Convencionei que não haverei de aguardar a dita “grande passagem” para ter acesso a este reino abençoado por minha fome de prazer. Aliás, muito pelo contrário, é tão simples...

__ Fala, porra! – irrita-se Seu Carlos.

__ Tá! É o seguinte: meu paraíso é uma sala com um colchão cobrindo o chão. Sobre ele, uma mulher – não importa o cheiro, a cor, o gosto – uma mulher. Ali ficaríamos, descobrindo-nos à luz de centenas de velas espalhadas pela sala ou, numa eventualidade...

__ Teu paraíso tem eventualidades? – pergunta o poeta.

__ Cala a boca. Deixa eu continuar: daí, se por algum acaso não houver velas, basta a luz da televisão, muda, fora do ar. As paredes tocando The Doors. Ficamos ali durante semanas.

__ Jantando palavras de amor? – torce, então, o poeta.

__ Não. Nada. Talvez. Sabe como é: o homem nasce bom, a sociedade o corrompe e a mulher prova que ele é burro. Então em meu paraíso somos sós, a ausência do sol e suor. Nada de palavras. Eis o meu paraíso.

Pedro, como se perguntassem:

__ O meu paraíso fica num lugar à beira do mar. Talvez na praia. Quem sabe até nas pedras, sob o sol. Lá, a língua oficial é o Francês, muito embora não precise usar palavras. Tu só precisas pensar, desde que sincero, e o outro logo te entende. Lá, o homem não coloca a mão, nem tem acesso com forma sequer de preconceito - tens que abdicá-lo se quiseres ali ficar. Chegar até. O fundo musical é o mar batendo nas pedras, quando muito o vento cheio de malícia sussurrando a paz. Lá também não se pode julgar.

Deus, cansado daquela corja de egoístas que, convenha-se, está abusando dos assuntos respeitantes somente a Ele, manda um raio que os faz calar para sempre...

(07.12.2001)

sexta-feira, 9 de julho de 2010

SINHAZINHA CARRETEL

(31.03.2003)

O marmanjo que invadiu,
arredio e atrás de melado, a dispensa
apresentação dispensa.
Fora herói pr’uma alma a quem emprestou asas
e que na grande casa... lá servia;
fez anjo uma de tez escura,
uma negra pura
que não é mais escrava não.
Era ele um viandante, um luso elegante
que, chegando ofegante, aqui parou
dez dias.
Dizia ser senhor do mundo;
e o negro imundo que vos fala
de lembrar quase se cala
de tanta tristeza e saudade:
é que a “Dona Liberdade”
certa noite descobriu meu ninho
e no meio de um carinho
Carretel cismou: “vou m’embora!
Não te apavora
morrer sem correr,
uma vez ao menos,
por estas praias feito caranguejo?”.
Eu, com um beijo, a fiz calar
porque suportar sua falta
era cruz tão alta, tão sofrível...
assaz difícil de carregar;
amei-a, então, mais que a vida
e aquela coisa doída perdeu-se ali.
Mas a princesa deste chão
– meu coração,
viu no luso a salvação:
tornar-se-ia com’uma cotovia:
livre! A sua carta de alforria,
sabia,
se escondia no amor do português.
O pobre moço,
ao despir sua timidez,
seu alvoroço,
Repetiu mais de uma vez,
que eu ouvi:
“__ Essa negrinha vai ser minha!
Nem que eu tenha que preto virar,
perder a linha, roubar (pois que roubou-me ela o sossego!)
a rapariga, e quem quer que me siga
descobrir-me-á realizado!
Quero ser seu negro!”
Certa feita, ele a’bordou num canto
e, para meu espanto,
ela sorriu
quando ele lha ofereceu
tão sonhada liberdade,
mais mil doces tardes
na Europa com lindas tropas
a desfilar em sua janela.
Carretel deu-lhe trela
e de forma singela
jurou-lhe, falsa, fiel amor.
Este rancor
que corrói o meu presente
ainda lembra das desculpas
dela.
Ela, que as cuspia no meu corpo
na noite que, após o dele quarto,
foi ao meu contar seus planos;
eu, quase farto, padeci
diante do meu maior engano:
amar insano, tão louco, uma mulher.
O plano deles?
Seria na Festa do Divino
Que eles escondidos
dos alvos, partiriam
no ‘blém-blém’ dos sinos,
rumo ao seu destino:
o além-mar.
Chorei a vida
vendi a alma
perdi a calma
e lhe implorei ficar.
À Iemanjá fiz oferenda
mas nem ela me escutou.
Não podia um simpl’escravo
amarrar consigo o espírito
livre de uma princesa
africana.
Ela fez a gentileza
de deixar-me uma certeza:
eu a fiz muito rainha.
Mas para tristeza minha,
mais que eu, ela queria
ver-se livre das correntes.
Chegado o dia combinado,
estava tudo preparado:
os convidados murmurantes
com seus semblantes displicentes
irritavam, inocentes, a negra moça
no instante todo da espera do pecado
que o covarde do amante,
nada galante, ainda não se arriscara
mergulhar.
Mergulhar em rebeldia
àquelas alegorias falsas,
gurias meras,
infantis quimeras,
tédio de valsas...
que lhe faziam tanto mau.
“__ Fujas comigo, cases comigo,
meu amor. Partamos já!” – chilrou enfim.
Ela, que servia a nobreza vazia,
com os olhos em lágrimas, virou-se para mim.
O sorriso que (fingi!) fugiu-me os dentes
rompeu as correntes que a prendiam mais até
que o grilhão que sua cor lhe impôs aos pés.
Pés descalços
que, em passos falsos,
tentara fugir, desde a idade tenra.
Sempre quis e pode agora
“quilombear”.
Os filhos da Mãe Terra,
da África Mãe, negros dos meus
sonharam o apogeu daquela uma.
Libertos, fugidos, ainda... foram ao cais
e naquele raiar, nós fomos reis,
como éramos lá do outro lado.
Presentearam não Iemanjá, mas a livre
que um dia tive em braços cansados.
Naquela manhã dos pretos,
o sol era ribalta do cenário
muito embora desnecessário
pois já era tudo belo
para aquela negra minha.
Carretel,
A noiva sem véu
de dedos lambuzados de mel (da sua Lua)
perdeu o anel (ou seria a aliança?)
herdado na dança, dela ida criança
do inferno ao céu
num navio de papel.
Na despedida (tão sofrida!)
não resistiu
da nave, o assobio;
na face, uma lágrima se viu
recompôs-se elegante, virou-se e com olhar distante
ganhou o esp’ássaro. Uma gaivota flagrou
na pele marrom, um arrepio
ciente que a viagem era sem volta;
livres (só elas o são!) as aves eram escolta
e testemunhas do fel
que dava gosto àquela insensatez.
O português ao lado, ignorado e cortês
acenava para os do porto.
O povo, de sorriso torto, retribuía ao infeliz
- o maldito que quis
carregar
para longe, a mais bela daquelas,
moça que atirara o que lha afligia os dedos ao mar
(em minhas mãos).

O LOUCO, O POETA, O BÊBADO E PEDRO (2/3)

__ Por falar em beber: ô Seu Carlos, cadê a branquinha? De butiá, hein! – e para Pedro, enquanto o velho dono do bar traz a cachaça: Bicho, a tirania é a única regra nessa lama que vocês engolem e cagam desd’antes da época do mercantilismo, desde que o mundo é mundo; mas que está finalmente secando. Aliás, tirania não é só ditador latino-americano dando porrada nos pele ou boina vermelhas. É toda essa babaquice de submissão aos sistemas.

__ Para que esse papo furado? Essa lenga-lenga ideológica que não leva a nada, se é tão bom e tão mais simples falar da doença dos tempos: o amor? – interrompe um sujeito meio excêntrico de óculos de lentes cor-de-rosa, em pé e cima do balcão. O Poeta.

Continua o Louco:

__ Em verdade, em verdade vos digo: este quadro que vocês insistem aplaudir, comprar e babar nas salas de visitas está para ser tirado da parede. É prova de que nada está dando certo: está tudo tão triste, tudo sem cor. O homem se entorpece no rancor de ter-se perdido, só - verdade crua - neste labirinto de loucura... Loucura por riqueza, por posição. Da dor do próximo, a construção desses prédios de egoísmo, muros de mentiras e cinismo. Crianças pobres, crianças mortas. Nós covardes, atrás das portas, contando nosso dinheiro e nos perdendo por inteiro. Perdendo a chance de nos dar... À luta! Vamos ter que jogar a verdade na cara dos imbecis e morrer todas as noites pr’um amanhecer feliz.

O Poeta:

__ Mas que tal nos esconder no mangue? Pra que se afogar em sangue, se é tão bom, tão mais óbvio falar de amor?

Pedro:

__ Amor de homem e mulher. Amor de irmãos, e até mais... amor de iguais, quem não quer?

O Louco continua com ar abatido, como se não interrompido fosse:

__ Esperança e paz aqui na Terra. Faça amor, não faça guerra! Mas o bicho homem se nega, nessa vingança burra e cega daquilo que perdeu e que sempre foi seu. Mas soube ele noutro plano, um dia, que era dentro dele que se escondia toda a verdade que sempre quis; e hoje ele torce o nariz só porque desconhece que, através de simples prece, pode ser mais que homem, quase um anjo - que toca harpa, brinca com banjo e segue firme sua saga, seu caminho... todo de branco, em puro linho. Vaidoso? Só por brincadeira. Mas por mais que sua’lma não queira vem o Mau e o balança. Esse maldito não descansa!

Pedro, contando nos dedos:

__ O homem se perde na gula; a preguiça o estrangula; a inveja corrói seu coração; e ainda vem a ambição, de braços dados com a luxúria; e a ira o envolve em fúria tão forte quanto a vaidade. E evoluir, ele deixa para mais tarde. Desconhece ele que nessa hipocrisia ele vai sentar-se nunca à direita de Deus-Pai.

__ Não, não falemos de Deus, tu tens o Teu, eu tenho o Meu... Além do que, é tão mais simples falar de amor! – quebra novamente o clima, o Poeta.

Ansioso, fala Pedro:

__ Amor de homem e mulher. Amor de irmãos, e até mais... Amor de iguais. Quem não quer?

O Louco, enxugando o suor com a manga da camisa:

__ O homem nem sabe que nesse mundo não mais cabe tamanha falta de respeito. Ninguém mais se dá o direito de gozar mísera paz - que tanto O Celeste apraz; mas que se perde em simples mau - mentira, ódio... tudo igual, o reconduz para baixo (selvagem fêmea, selvagem macho). E o que, ao certo, norteia arcanjo, duende, sereia, é a lei de que se deve ser bom. Todos, um só, num mesmo tom, preparemo-nos para o porvir e, se acaso cair, com toda a fé do mundo, reze! porque cristão que se preze - e Cristo está à direita do Senhor! - transfere todo amor para a grandeza de seus propósitos. O mundo é repleto de paradoxos; de verdades nem tão assim. Mas só existe um único fim: evoluir. Mas não te esqueças de sorrir - porque o sorriso é uma flor nos jardins da Egrégora do Amor.

Pedro, animado e trêmulo, sacode os braços e dispara:

__ Não adianta abrir os olhos destes pobres, porque existe coisa bem mais nobre: nada melhor que falar de amor! Amor de homem e mulher. Amor de irmãos, e até mais... Amor de iguais. Quem não quer?

O Poeta aplaude. Finaliza a discussão, o Louco:

__ Abdico tudo que nasceu comigo, tranqüilidade, riqueza, mas não amigos; pois são como eu: alma nobre que assaz sofreu nesta longa caminhada. Mas não quero mais nada: de minha cabeça faço mira para os poetas sem liras - falsos detentores da certeza, que espalham por aí a fraqueza da crença que tudo termina em si. Senhores: aqueles em quem um dia cri não mais dominarão este lugar. Com eles haverei de lutar com o mais poderoso escudo: na provocação faço-me mudo, e revido com perdão. Daí eles sofrerão com a verdade suprema em suas portas. Suas frases tortas padecerão diante da luz, como Cristo morto na cruz, para mudar tudo que nos cerca. Estejamos todos em alerta!!! Deixemos de falar de amor! Esqueçamos de falar de amor! Enterremos a palavra amor! Façamos com que ela, da forma mais singela, circule por entre nós e que possamos crescer ao som d’uma só voz: Amor de homem e mulher, amor de irmãos, e até mais... Amor de iguais. Quem não quer?

O poeta começa a chorar. Pedro acompanha as lágrimas do pobre.

__ Calem a boca! – grita um bêbado debruçado sobre o balcão de madeira riscada. Continua, ainda aos berros: Amor é aquilo que nasce, pensa que vive e morre entre dois momentos de dor, angústia e desilusão. É onde nós, náufragos de um mundo irreal, procuramos pela maré chegar e sobreviver aos turbilhões da solidão, às ondas da tristeza e nos iludimos descansar após infinitas braçadas de auto-piedade e mentiras sinceras.

De dentro do espelho:

__ Viva Cazuza! Viva Cazuza!

__ Psiu! – Pedro censura o homem do espelho e, para o Bêbado, comenta: Que angustia a tua, hein?!

Responde o Bêbado:

__ É uma merda esta vida! Esta vida é uma merda! Digo, explico e convenço: é que tem uma moça aí que me encanta. Cara, somos feitos um pro outro, juro! Só que eu não consigo entendê-la... e olha que eu tento! Acusa-me de frio de vez em quando; outros quandos de ser afobado. Eu faço de tudo! Esses dias eu até disse pro meu “Labirinto” (chamo-a de Labirinto porque a cabeça dela é uma coisa tão confusa que até deve ter um Minotauro escondido lá dentro): “Tô indo brincar Labirinto, te provar o que sinto e o que o destino diz: fazer-te-ei tão feliz! Sabes bem, sou arredio. Mas sofrer não dá mais. E ademais, Sinhá Lindeza, hoje eu tenho a certeza que tu és o meu cais... sou navio!”. Então ela me diz: “Calma, ser-te-ei de corpo e alma. Antes, porém, hei de conquistar meu espaço!”. Daí eu a seguro no braço, mas depois largo: “Vá em paz! Afinal, Deus sabe o que faz.”. E ela parte sem olhar pra trás. No meu peito, o que sinto não cabe: Sua falta. Quanta saudade!

__ Meu amigo, quanta angustia! – disse o Louco.

O Poeta:

__ Essa angustia, tu afogas na cachaça... E da moça, qual a graça?

Responde o Bêbado:

__ Maria Augusta. Maria Angustia.

O Louco:

__ É o preço dessa barbárie! Esse crime dos homens contra a Natureza: essa tal monogamia. Mas isso vai acabar! Esta história de dois corpos e uma só alma está ultrapassada, visto poderes pleitear crescer sozinho feito um eremita. Mas também podes galgar a “Egrégora da Felicidade” sendo de todos, porque tu és um deles... como uma laranja num cesto. Mesmo porque... – o Louco é interrompido pelo do espelho:

__ “... quem gosta de maça irá gostar de todas porque todas são iguais...”

__ Viva Raul! – todos, menos o Bêbado e o Poeta. Este, em socorro à sua razão de ser:

quinta-feira, 8 de julho de 2010

O LOUCO, O POETA, O BÊBADO E PEDRO (1.ª parte de 3)

(07.12.2001)

Um cara, Pedro, anda pela calçada entretido no fone de ouvido, quando adentra no ecleticismo de um bar num início de tarde de segunda feira. Chove. Toca, na hora e no fundo, ‘La Chanson Pour Anna’, belíssima. Traz no sovaco um livro com capa de couro do Mario Quintana com as letras, outrora douradas, sumidas. Vem vestido com uma camiseta que mandara tingir no peito a palavra “ORDEM”, só isso. “Boas tardes”, num Português de Portugal – lera Saramago fazia pouco, dirigindo-se ao dono do bar. Senhor de boina velha, canino esquerdo de ouro e barrigudo atrás do balcão. Há um espelho na parede, também atrás do balcão.

Senta-se numa mesa nem de frente, nem de fundo. Abre o jornal que descansara a manhã inteira sobre o balcão, sob copos. É de junho de 1978. Começa a folheá-lo.

Eis que entra um velho vestindo um chapéu de palha, “tarde!”, faz um sinal para o barrigudo que lhe prepara dois dedinhos de pinga. O cara para, olha em volta e em direção de Pedro, aponta-lhe o peito e diz:

__ Não é ordem: é desordem!

__ Perdão? – Pedro não entende.

__ É a tendência do novo milênio: DESORDEM. Dizemos que é a nova ordem mundial.

O rapaz pára de ler:

__ Anarquista?

Um sujeito de dentro do espelho grita, interrompendo a conversa:

__ Graças a Deus!

__ Cala a boca, ô Zélia Gattai – repreende o dono do bar, Seu Carlos. Chamemo-lo de ‘Seu Carlos’.

__ Não, – continua o velho (Louco), que sentara debaixo da mesa donde descansava Pedro – alguém por dentro do que está para acontecer.

__ E do que está acontecendo, algo sabes?

__ Tudo.

Pedro, displicente:

__ A humildade, tolo, é o jardim das virtudes.

De dentro do espelho, nova interrupção:

__ “Se alguém quer ser o primeiro, será o último e servo de todos” .

__ Sai fora, Jesus, o Cristo. – Seu Carlos tolhe-o novamente.

O velho Louco continua, sentado ainda sob a mesa de Pedro, em frases desconexas:

__ Esse teu papo de anarquia... opções políticas, pelo menos as que conhecemos hoje e que você respeita... primeira, segunda ou terceira vias não condizem com a realidade que está para sair da porta dos novos tempos... a aurora de um novo mundo sopra em nossa face e você com esse papo furado de "ordem"! Acorda pra vida, amizade!

__ Então, meu senhor, estás a dizer-me que cairá por terra toda aquela concepção utópica de democracia sem ao menos bebermos o cálice de sua plenitude? – retruca Pedro.

SAUDADES MARIA ANGUSTIA (relatos de um morto)

(16.08.2000)

Um anjo compartilha o mesmo galho de árvore onde estou sentado nesta tarde de domingo, enquanto vejo o meu grande amor distribuir sorrisos neste piquenique de toalha vermelha quadriculada que lembra umas almofadas da casa da minha avó. Desgraçado por não descobrir um pingo sequer de dor neste rosto de porcelana, choro lágrimas que viram borboletas. Neste galho de ironia, minha tristeza colore o dia da única mulher para quem ousei balbuciar "para sempre ".

Sei (e isto me conforta) que, desde meu passamento, ela não mais amou alguém, e por isso a perdôo (ainda que me incomode vê-la sorrindo lindamente). Em seus lábios, onde por vezes renasci, esperava ver irromper soluços. Mas ela só ri. Sorri. E eu, de mãos dadas com este anjo, odeio-me por não a ter envolvido num abraço maior que o mundo... ter sido seu mundo.

Quanta saudade, Maria Angustia...

E esse anjo, que não pára de me olhar com essa cara de pena... Vai, diz pra ela que eu estou aqui. Vai, eu lhe suplico.

Por Deus! Ela suspirou daquele jeito que sempre fazia quando me perdoava pela frieza que tanto me acusou.

Agora me resta perambular pelas ruas da cidade, chutando as latas de meus arrependimentos. Os cachorros latem distante e o perfume de tristeza me embebeda a eternidade. A brisa que varre papéis caídos no chão cantarola, como a voz da consciência em meus ouvidos: "teus dias serão contemplá-la feliz e tu viverás morto".

__ "Mas não para ela" - respondo.

__ "Mas não para ela" – a brisa concorda.

A vida caminha tranqüila para os que ficam nessa vida de amores, sentimentos definidos e onde o certo e o errado são bem distintos um do outro. Do lado de cá tudo é tão disforme, tão relativo, tão amplo... difícil é se acostumar a se esquecer o quão bom era olhar e, simplesmente, amar ou não... tudo era tão sem razão.

A CASA

(15.10.2001)

Na cidade de Ondeuvim se esconde um bairro chamado Desesperança. Nele existe uma pacata rua em que o mato cresce te-imoso por entre os paralelepípedos mal distribuídos pelo chão: a Rua da Amargura. Em frente ao terreno baldio de propriedade da família das Lamentações, ainda naquele logradouro, qualquer um pode ver uma casa cor de vento, rodeada por um jardim de girassóis artificiais que, cabisbaixos, olham para a eterna sombra do fundo do quintal, onde ficam entulhadas as recordações de momentos passa-geiros e indignos de lembrança. Sua sala de visitas fica sujeita às in-constâncias de correntes de ar do acaso, à mercê do destino. Encra-vada na parede suja e descascada, há uma porta de madeira com trincos enferrujados e riscada com carvão: AUTOPIEDADE. Uma vez aberta, depara-se o intruso com uma escada de onze degraus que conduz ao porão.

Diz-se que em cada degrau desta escada há uma letra, ris-cada por um pobre-coitado à beira da insanidade com um caco de vidro: "C" no primeiro, ainda iluminado pela luz que vem das janelas com cortinas podres da sala; "O" no segundo e desgastado; "N" no terceiro, que insiste num rangido de advertência; "S" no quarto de-grau, já mergulhado pela escuridão; "C", "I", "E", "N" são os se-guintes passos a serem dados rumo ao corredor destino da descida, que se finda com três degraus onde se lê "C", "I" e, finalmente, "A". No estreito caminho há uma pequenina mesa que ampara uma carta amarelecida e esquecida por alguém. Nela:

"No silêncio desta casa ouço minha respiração entrecortada por suspiros de marasmo. Não tenho em quem pensar e estou ciente de que minha in-timidade partirá comigo rumo ao crepúsculo de minha existência sem ser compartilhada com ninguém. Sigo meu triste caminho de braços dados com a solidão. Resta-me conformar o coração na pobre convicção de que sou somente mais um neste mundo de desregrados e egoístas. Sinto von-tade de chorar porém minhas lágrimas não são dignas de chantagear meu fado com este meu olhar tristonho implorando por alguém com quem possa dividir esta dor como um lírio à beira de uma estrada cinzenta. Se sou melancólico? Não sei. Desesperado? Estou (com certeza!)"

O autor, talvez o pobre ou qualquer outro alguém, tinha o hábito de, como um autêntico chato, privar de vírgulas seus textos. Talvez fosse esta a única liberdade do dono da biblioteca carcomida pelo tempo e repleta de clássicos da literatura vermelha.

Ao lado da carta, ainda sobre a mesa de três pés e madeira arranhada, dormem dois porta-retratos que a poeira protege dos cu-riosos os rostos tímidos de pessoas desconhecidas que tiveram suas paixões, suas desilusões e, a julgar pela expressão de seus olhos, suas inquietudes.

Sei que aquele rabisco faz parte de um livro. O livro escrito por meu desespero no dia que precedeu minha deixa neste mundo de merda - eu deveria partir com minhas descobertas!

Mas não o fiz...