sexta-feira, 9 de julho de 2010

SINHAZINHA CARRETEL

(31.03.2003)

O marmanjo que invadiu,
arredio e atrás de melado, a dispensa
apresentação dispensa.
Fora herói pr’uma alma a quem emprestou asas
e que na grande casa... lá servia;
fez anjo uma de tez escura,
uma negra pura
que não é mais escrava não.
Era ele um viandante, um luso elegante
que, chegando ofegante, aqui parou
dez dias.
Dizia ser senhor do mundo;
e o negro imundo que vos fala
de lembrar quase se cala
de tanta tristeza e saudade:
é que a “Dona Liberdade”
certa noite descobriu meu ninho
e no meio de um carinho
Carretel cismou: “vou m’embora!
Não te apavora
morrer sem correr,
uma vez ao menos,
por estas praias feito caranguejo?”.
Eu, com um beijo, a fiz calar
porque suportar sua falta
era cruz tão alta, tão sofrível...
assaz difícil de carregar;
amei-a, então, mais que a vida
e aquela coisa doída perdeu-se ali.
Mas a princesa deste chão
– meu coração,
viu no luso a salvação:
tornar-se-ia com’uma cotovia:
livre! A sua carta de alforria,
sabia,
se escondia no amor do português.
O pobre moço,
ao despir sua timidez,
seu alvoroço,
Repetiu mais de uma vez,
que eu ouvi:
“__ Essa negrinha vai ser minha!
Nem que eu tenha que preto virar,
perder a linha, roubar (pois que roubou-me ela o sossego!)
a rapariga, e quem quer que me siga
descobrir-me-á realizado!
Quero ser seu negro!”
Certa feita, ele a’bordou num canto
e, para meu espanto,
ela sorriu
quando ele lha ofereceu
tão sonhada liberdade,
mais mil doces tardes
na Europa com lindas tropas
a desfilar em sua janela.
Carretel deu-lhe trela
e de forma singela
jurou-lhe, falsa, fiel amor.
Este rancor
que corrói o meu presente
ainda lembra das desculpas
dela.
Ela, que as cuspia no meu corpo
na noite que, após o dele quarto,
foi ao meu contar seus planos;
eu, quase farto, padeci
diante do meu maior engano:
amar insano, tão louco, uma mulher.
O plano deles?
Seria na Festa do Divino
Que eles escondidos
dos alvos, partiriam
no ‘blém-blém’ dos sinos,
rumo ao seu destino:
o além-mar.
Chorei a vida
vendi a alma
perdi a calma
e lhe implorei ficar.
À Iemanjá fiz oferenda
mas nem ela me escutou.
Não podia um simpl’escravo
amarrar consigo o espírito
livre de uma princesa
africana.
Ela fez a gentileza
de deixar-me uma certeza:
eu a fiz muito rainha.
Mas para tristeza minha,
mais que eu, ela queria
ver-se livre das correntes.
Chegado o dia combinado,
estava tudo preparado:
os convidados murmurantes
com seus semblantes displicentes
irritavam, inocentes, a negra moça
no instante todo da espera do pecado
que o covarde do amante,
nada galante, ainda não se arriscara
mergulhar.
Mergulhar em rebeldia
àquelas alegorias falsas,
gurias meras,
infantis quimeras,
tédio de valsas...
que lhe faziam tanto mau.
“__ Fujas comigo, cases comigo,
meu amor. Partamos já!” – chilrou enfim.
Ela, que servia a nobreza vazia,
com os olhos em lágrimas, virou-se para mim.
O sorriso que (fingi!) fugiu-me os dentes
rompeu as correntes que a prendiam mais até
que o grilhão que sua cor lhe impôs aos pés.
Pés descalços
que, em passos falsos,
tentara fugir, desde a idade tenra.
Sempre quis e pode agora
“quilombear”.
Os filhos da Mãe Terra,
da África Mãe, negros dos meus
sonharam o apogeu daquela uma.
Libertos, fugidos, ainda... foram ao cais
e naquele raiar, nós fomos reis,
como éramos lá do outro lado.
Presentearam não Iemanjá, mas a livre
que um dia tive em braços cansados.
Naquela manhã dos pretos,
o sol era ribalta do cenário
muito embora desnecessário
pois já era tudo belo
para aquela negra minha.
Carretel,
A noiva sem véu
de dedos lambuzados de mel (da sua Lua)
perdeu o anel (ou seria a aliança?)
herdado na dança, dela ida criança
do inferno ao céu
num navio de papel.
Na despedida (tão sofrida!)
não resistiu
da nave, o assobio;
na face, uma lágrima se viu
recompôs-se elegante, virou-se e com olhar distante
ganhou o esp’ássaro. Uma gaivota flagrou
na pele marrom, um arrepio
ciente que a viagem era sem volta;
livres (só elas o são!) as aves eram escolta
e testemunhas do fel
que dava gosto àquela insensatez.
O português ao lado, ignorado e cortês
acenava para os do porto.
O povo, de sorriso torto, retribuía ao infeliz
- o maldito que quis
carregar
para longe, a mais bela daquelas,
moça que atirara o que lha afligia os dedos ao mar
(em minhas mãos).

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