quinta-feira, 8 de julho de 2010

A CASA

(15.10.2001)

Na cidade de Ondeuvim se esconde um bairro chamado Desesperança. Nele existe uma pacata rua em que o mato cresce te-imoso por entre os paralelepípedos mal distribuídos pelo chão: a Rua da Amargura. Em frente ao terreno baldio de propriedade da família das Lamentações, ainda naquele logradouro, qualquer um pode ver uma casa cor de vento, rodeada por um jardim de girassóis artificiais que, cabisbaixos, olham para a eterna sombra do fundo do quintal, onde ficam entulhadas as recordações de momentos passa-geiros e indignos de lembrança. Sua sala de visitas fica sujeita às in-constâncias de correntes de ar do acaso, à mercê do destino. Encra-vada na parede suja e descascada, há uma porta de madeira com trincos enferrujados e riscada com carvão: AUTOPIEDADE. Uma vez aberta, depara-se o intruso com uma escada de onze degraus que conduz ao porão.

Diz-se que em cada degrau desta escada há uma letra, ris-cada por um pobre-coitado à beira da insanidade com um caco de vidro: "C" no primeiro, ainda iluminado pela luz que vem das janelas com cortinas podres da sala; "O" no segundo e desgastado; "N" no terceiro, que insiste num rangido de advertência; "S" no quarto de-grau, já mergulhado pela escuridão; "C", "I", "E", "N" são os se-guintes passos a serem dados rumo ao corredor destino da descida, que se finda com três degraus onde se lê "C", "I" e, finalmente, "A". No estreito caminho há uma pequenina mesa que ampara uma carta amarelecida e esquecida por alguém. Nela:

"No silêncio desta casa ouço minha respiração entrecortada por suspiros de marasmo. Não tenho em quem pensar e estou ciente de que minha in-timidade partirá comigo rumo ao crepúsculo de minha existência sem ser compartilhada com ninguém. Sigo meu triste caminho de braços dados com a solidão. Resta-me conformar o coração na pobre convicção de que sou somente mais um neste mundo de desregrados e egoístas. Sinto von-tade de chorar porém minhas lágrimas não são dignas de chantagear meu fado com este meu olhar tristonho implorando por alguém com quem possa dividir esta dor como um lírio à beira de uma estrada cinzenta. Se sou melancólico? Não sei. Desesperado? Estou (com certeza!)"

O autor, talvez o pobre ou qualquer outro alguém, tinha o hábito de, como um autêntico chato, privar de vírgulas seus textos. Talvez fosse esta a única liberdade do dono da biblioteca carcomida pelo tempo e repleta de clássicos da literatura vermelha.

Ao lado da carta, ainda sobre a mesa de três pés e madeira arranhada, dormem dois porta-retratos que a poeira protege dos cu-riosos os rostos tímidos de pessoas desconhecidas que tiveram suas paixões, suas desilusões e, a julgar pela expressão de seus olhos, suas inquietudes.

Sei que aquele rabisco faz parte de um livro. O livro escrito por meu desespero no dia que precedeu minha deixa neste mundo de merda - eu deveria partir com minhas descobertas!

Mas não o fiz...

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