quinta-feira, 8 de julho de 2010

O LOUCO, O POETA, O BÊBADO E PEDRO (1.ª parte de 3)

(07.12.2001)

Um cara, Pedro, anda pela calçada entretido no fone de ouvido, quando adentra no ecleticismo de um bar num início de tarde de segunda feira. Chove. Toca, na hora e no fundo, ‘La Chanson Pour Anna’, belíssima. Traz no sovaco um livro com capa de couro do Mario Quintana com as letras, outrora douradas, sumidas. Vem vestido com uma camiseta que mandara tingir no peito a palavra “ORDEM”, só isso. “Boas tardes”, num Português de Portugal – lera Saramago fazia pouco, dirigindo-se ao dono do bar. Senhor de boina velha, canino esquerdo de ouro e barrigudo atrás do balcão. Há um espelho na parede, também atrás do balcão.

Senta-se numa mesa nem de frente, nem de fundo. Abre o jornal que descansara a manhã inteira sobre o balcão, sob copos. É de junho de 1978. Começa a folheá-lo.

Eis que entra um velho vestindo um chapéu de palha, “tarde!”, faz um sinal para o barrigudo que lhe prepara dois dedinhos de pinga. O cara para, olha em volta e em direção de Pedro, aponta-lhe o peito e diz:

__ Não é ordem: é desordem!

__ Perdão? – Pedro não entende.

__ É a tendência do novo milênio: DESORDEM. Dizemos que é a nova ordem mundial.

O rapaz pára de ler:

__ Anarquista?

Um sujeito de dentro do espelho grita, interrompendo a conversa:

__ Graças a Deus!

__ Cala a boca, ô Zélia Gattai – repreende o dono do bar, Seu Carlos. Chamemo-lo de ‘Seu Carlos’.

__ Não, – continua o velho (Louco), que sentara debaixo da mesa donde descansava Pedro – alguém por dentro do que está para acontecer.

__ E do que está acontecendo, algo sabes?

__ Tudo.

Pedro, displicente:

__ A humildade, tolo, é o jardim das virtudes.

De dentro do espelho, nova interrupção:

__ “Se alguém quer ser o primeiro, será o último e servo de todos” .

__ Sai fora, Jesus, o Cristo. – Seu Carlos tolhe-o novamente.

O velho Louco continua, sentado ainda sob a mesa de Pedro, em frases desconexas:

__ Esse teu papo de anarquia... opções políticas, pelo menos as que conhecemos hoje e que você respeita... primeira, segunda ou terceira vias não condizem com a realidade que está para sair da porta dos novos tempos... a aurora de um novo mundo sopra em nossa face e você com esse papo furado de "ordem"! Acorda pra vida, amizade!

__ Então, meu senhor, estás a dizer-me que cairá por terra toda aquela concepção utópica de democracia sem ao menos bebermos o cálice de sua plenitude? – retruca Pedro.

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