sexta-feira, 17 de setembro de 2010

BRAD - a história de amor entre um cão e uma família

* este texto eu escrevi muito antes do livro "Marley e Eu" (acho até que o cara me copiou) De qualquer forma, desde que o escrevi nunca tive coragem de relê-lo (ou corrigi-lo). Publico-o como saiu.

I

Se entre as pedras dos jardins surgissem fadas madrinhas com seus mágicos poderes de fazer o impossível e, se dispostas a satisfazer nossa curiosidade, transformassem em gente os cachorros, teríamos uma oportunidade de ouro para trocar uma idéia com estes nossos grandes amigos – apesar das palavras serem, entre nós e eles, absolutamente dispensáveis.

E se estas fadas pousassem naquela casa de quintal cercado por um verdejante matagal, e com suas varinhas de condão apontassem para o sexto filhote daquela ninhada de cockers spaniel, daquele cachorrinho cor de caramelo surgiria uma criança alegre e travessa. Caçula, brigava por um espaço entre os irmãos para amamentar na paciente mamãe cocker. O pai, zeloso, percorria o quintal com suas longas orelhas a sondar e refutar qualquer sinal de perigo que se aproximasse de suas crias.

E vencidas as primeiras semanas de vida daquele sexteto sapeca, os pais choraram ao ver partir, um a um, os filhotes já desmamados e vacinados rumo ao destino que o Deus dos homens e dos cães lhes havia reservado.

E o mais novo deles se despedia, às lambidas e sem bem entender a razão do pesar no peito, dos irmãozinhos que partiam aos prantos. Cada um que se ia, era um vazio no coração, mas um espaço a mais no aconchego da mamãe, que uivava muda às noites.

O filhotinho, que agora dividia a atenção dos pais com apenas uma irmãzinha, crescia rapidamente, com seus olhos curiosos e espírito aventureiro – corria atrás das galinhas a ciscar no quintal, tomava sustos com a mangueira que irrigava as verduras por ali plantadas, e ganhava o dia ora sob a sombra do pai de orelhas grandes, ora aporrinhando a vida da mãe, exigindo carinho.

Eis que um dia parou na frente do portão de ferro um carro branco, donde desceu um jovem casal. O pequenino instintivamente se pôs entre as patas da mamãe, que latia desesperada. O coração do pobre acompanhava o acelerado da mãe, que sentia se aproximar o momento da partida de mais um filhote. A estranha então se acocorou e falou qualquer coisa de forma tão doce e carinhosa, que o pequeno cocker encorajou-se e deixou a segurança da mãe atraído por sua encantadora voz. Ela segurou o cãozinho que, tamanha sua pequeneza, coube numa palma. Um sorriso sintonizado entre o casal foi o sinal que selava a certeza: estava escolhido o presente de aniversário de Zezinho.

Não haveria fada madrinha que atenuasse a dor da mamãe cocker ao ver seu filhote mais novo e indefeso partir nos braços daquela gente.

II

Zezinho não via a hora de pegar no sono para que a manhã seguinte chegasse logo, para finalmente poder ver os presentes. Apesar dos setes pintados, sabia que havia se comportado o ano inteiro e por esta razão receberia muitos deles. Os pais vieram ao quarto do menino e juntos rezaram a Deus. Quando a mãe, após a benção e o beijo de boa-noite, estava apagando a luz do quarto, ouviu um último suspiro do filho:

_ Papai do Céu, sinto tanta falta de um amigo...

A porta do quarto se fechou e os pais se congratularam pelo acerto da escolha.

O silêncio da manhã do aniversário, um domingo, foi quebrado pela correria do pequeno José pela casa, procurando despertar o mundo para a abertura dos presentes. Todos postos e dispostos na sala, os primeiros presentes – meias, pijamas, etc. – decepcionaram o menino. E quando tudo parecia terminado, restava uma caixa de papelão com alguns furos num canto do cômodo. Zezinho sequer reparara nela, até quando a mesma passou a sacudir-se sozinha. A primeira reação foi de susto, depois medo, após curiosidade, enfim ação: puxou, após o gesto de consentimento da mãe, o laçarote vermelho que lacrava o presente, e ao levantar a tampa da caixa permaneceu imóvel, boquiaberto, surpreso, estupefato, encantado...

_ Um cachorrinho!

Seus olhos se encheram de lágrimas e não teve a audácia, num primeiro instante, de segurar o presente. Coube à mãe a tarefa de retirar o tímido e sonolento cãozinho da caixa e apresentá-lo ao dono:

_ Este aqui é o Zezinho, seu novo amigo – disse entregando-o ao filho – E como iremos chamá-lo?

_ Brad! – Zezinho disse quase sem pensar.

_ Brad... – sussurraram a mãe, o pai, os avós e os tios.

_ É um nome bonito. – concluiu a vózinha.

III

Brad foi a alegria do dia, da semana, do final do ano e das férias de verão. Ainda tinha pêlos de filhote, seu xixi era apenas uma gotinha e sequer erguia a patinha traseira para faze-lo. Ainda não sabia correr, e ao tentá-lo para acompanhar Zezinho acabava tropeçando em si mesmo ou nas próprias orelhas; e por falar nestas, sempre que bebia água em seu pequeno pote, terminava por encharcá-las.

Brad jogava (ou pelo menos tentava) bola com os meninos na rua; era o neném das meninas da vizinhança que brincavam de casinha; era o companheiro do pai nas caminhadas matinais e companhia para a mãe nas tardes de chuva com tricô. Zezinho confidenciava-lhe os seus maiores segredos, compartilhava seus receios, dividia-lhe os sonhos e pedaços (escondidos) de pão. Brad se mostrava o amigão que pedira a Deus e era a diversão para toda a família. Se a fada madrinha aparecesse por ali, daria conta de um menino como Zezinho, educado, brincalhão e curioso.

Mas se durante o dia o cãozinho era impossível, às noites era um terror: Brad não se acostumava a ficar sozinho de maneira alguma – permanecia, teimoso, cochilando sobre os pés do último a se recolher, e quando era posto em sua casinha toda enfeitada, punha-se a latir e a chorar um choro tão triste que sempre comovia os pais de Zezinho, que o levavam para dormir em seu próprio quarto, porque o filho sofrera de bronquite quando bebê.

E assim, durante aquele verão na praia, Brad dormiu todos os dias no quarto dos pais, no início despertando-os nem bem nascia o sol, mas, com o correr dos dias e deixando-se contagiar pela preguiça da família, passou a ser o último a se levantar.

No final do verão e às vésperas do retorno à rotina, ninguém mais imaginava aquela família sem seu membro mais novo e, diga-se, canino.

IV

Os primeiros dias de aula foram bastante sofridos, primeiro porque Zezinho não estava mais acostumado a acordar cedo, segundo porque andara descalço ou de chinelo o verão todo, e terceiro porque Brad não podia o acompanhar na aula.

Mas o bom amigo ia com ele até o portão todo santo dia e, como se tivesse um relógio em pulso, se punha a postos para recebe-lo precisamente ao meio-dia e quinze, com pulos desesperados e lambidas de saudade.

Durante a manhã, andava como uma sombra da mãe, como que a pergunta-la o tempo inteiro o que estava fazendo. Ela conversava alegremente, narrando minuciosamente cada passo da receita que seguia na preparação do almoço ou de um bolo para o café da tarde. E Brad ficava acompanhando, com seus olhos de “pidão”, cada palavra da mãe. E nas manhãs mais cinzentas, naquelas em que o vento parece apertar o coração e uma lágrima brotava nos olhos da mulher, Brad enxugava-lhe o rosto com sua língua comprida e não sossegava enquanto não via um sorriso posto no lugar do pranto.

Durante as tardes, Brad era vítima das travessuras de Zezinho, ora sendo cachorro de pirata, ora cachorro de soldado, de astronauta, caçador ou de super-herói (com direito a capar e tudo o mais). E quando Zezinho cansava, era Brad que reclamava ação, arrancando o menino do marasmo ou do descanso.

Na boca da noite, Brad pulava nas pernas do pai enquanto este, na boca da mãe, era bem vindo. E Brad não descansava enquanto não recebia um carinho especial, uma chacoalhada nas orelhas ou uma coçada na barriga ou nas costas.

Jantava a família e Brad os acompanhava ao pé da mesa, como que querendo participar da conversa, dar sua opinião, protestar contra o aumento dos preços, reclamar do tempo ou comentar o resultado do futebol. E quando as luzes da casa iam se apagando, lá ia Brad para seu cantinho no quarto do casal.

Não podiam perceber como já havia crescido – aprendera a correr, comportar-se diante das visitas e a fazer cocô e xixi no local certo (e não mais dentro de casa) – e o quão bom era tê-lo por perto.

V

Eis que chegou o inverno e com ele o frio. Com o frio vieram os calafrios sentidos por Brad. A mãe providenciara uma roupinha de lã para o friorento cachorrinho, que arrancou gargalhadas da meninada e por esta razão Brad se recusava a vesti-la novamente.

Zezinho, não raro, acolhia-o em seu quarto com aquecedor, mas o cãozinho ali não se sentia confortável para suas longas horas de sono, e um dia o casal foi surpreendido com Brad em cima da cama, enroscado na coberta, dormindo a seus pés. E fazia tanto frio naquela noite, e nas noites seguintes, que não tiveram coragem para expulsa-lo dali. E Brad passou a dormir sobre os pés do casal.

Quando Brad voltava do pet-shop, parecia um homenzinho vaidoso: vinha engravatado, cheiroso, desfilando pela rua e arrancando suspiros apaixonados das cadelinhas da vizinhança (e ciúme dos machos). Ele tinha o péssimo hábito de provoca-los quando na companhia de Zezinho ou do pai: latia, esbravejava, enfrentava. Mas era só se ver sozinho, desprotegido, que caminhava cabisbaixo, em silêncio e em respeito.

Aliás, se Brad parecia e agia como gente do portão para dentro, para fora era um cachorro como outro qualquer: corria atrás dos carros, das motos, das bicicletas, dos carteiros..., cheirava e se deixava cheirar, metia-se em brigas e confusões e depois voltava para casa, faceiro, como se nada tivesse acontecido.

VI

Certo dia, Zezinho encrespou-se na escola com um menino mais velho, da rua de cima e dono de um pit-bull. O rapaz e seu cão então vieram até o portão da casa numa tarde em que a mãe foi fazer compras. Zezinho, após um sermão na hora do almoço, foi até o desafeto para pedir-lhe desculpas, não sendo porém atendido, mas agredido.

E lá do fundo do quintal partiu Brad ensandecido, pulando na canela do moleque e depois sobre seu bravo cachorro de guarda. A briga foi feia, sem vencedores ou vencidos, até ser apartada pelos vizinhos e transeuntes.

Mas Brad, todo machucado, revelou-se corajoso e companheiro, não deixando seu dono e amigo na mão.

Naquela noite, ambos tiveram febre, e ficaram sob a vigília dos pais.

Outro dia, Brad apareceu com uma cobra morta na boca, matada do jardim. Outra vez, latiu até ser descoberto pelo pai um ninho de aranhas caranguejeiras na garagem. Brad era o herói da meninada, muito admirado e querido por todo mundo.

VII

Até que um dia surgiu a notícia de que a mãe esperava um outro filho. Nem Brad nem Zezinho puderam compreender a dimensão daquela novidade, mas diante da felicidade que os pais demonstravam, coisa ruim não haveria de ser.

A mãe ia ficando cada vez mais barriguda e as atenções se voltavam para a chegada do quinto membro da família, o que despertou ciúmes nos dois velhos amigos.

Por recomendações médicas, Brad não pôde mais dormir no mesmo quarto do casal e, por birra, acomodou-se mal humorado num canto da área de serviço, entre a lavadora de roupas e o tanque. E porque frio o lugar, Brad contraiu uma pneumonia grave, curada mediante um tratamento longo e intenso, que fez notar que era ainda muito amado.

Zezinho também aprontou das suas para chamar a atenção dos pais: voltou a fazer xixi na cama, incomodava a professora na escola e virou “respondão” em casa.

Os pais sabiamente souberam contornar e relevar aquelas atitudes dos dois, explicando-os que jamais deixariam de amá-los e que o novo irmãozinho seria mais um motivo de alegria na vida de todos.

E assim o foi: Cininho nasceu numa primavera, na mesma época em que Brad completaria três aninhos e Zezinho oito.

Obviamente o neném demandava cuidados nos primeiros meses de vida, e Brad e Zezinho souberam respeitar seu espaço. Brincavam os dois durante horas a fio e, volta e meia, acompanhavam o pai em passeio e piqueniques para empinar pipa. Foram dias felizes.

VIII

Eis que Brad arrumou uma namorada. Sim, uma cocker também caramelo chamada Brenda. Charmosa, manhosa, dengosa, cativou o amor do nobre cachorrinho desde o primeiro momento que a viu, quando seus donos se mudaram para perto dali.

No princípio apenas trocaram olhares, depois cheiros e, com o consentimento de todos, logo estavam esperando os primeiros “netinhos” do casal.

Brad se mostrou um pai atencioso e um “marido” carinhoso, mas nem por isso deixou de retribuir o amor recebido por sua família: continuava sendo o melhor amigo de Zezinho, parceiro do pai e companheiro fiel da mãe. E também o afeto de Cininho conquistara – Brad ficava horas zelando seu sono, acompanhava seus banhos de sol, e não brigava quando o bebê vinha mexer na sua comida.

E assim, a família foi vivendo feliz.

(este é o final feliz da história)

IX

Quando Cininho já tinha idade para ir ao jardim de infância, Zezinho já tinhas seus compromisso de menino, e Brad sofreu de saudades de seus “protegidos”. A casa parecia agora tão grande e vazia durante as manhãs que Brad não suportava dentro dela ficar.

E um dia Brad se pôs doente. Amuado, vivia pelos cantos dormitando ou em silêncio. Todos ficaram preocupados com sua saúde, e os veterinários não encontraram explicação médica para aquele sofrimento.

E a medida que os dias foram passando, o estado de saúde de Brad foi piorando, até que tiveram que intervir.

O pai levou Brad para a clínica, para submete-lo a uma cirurgia de emergência. Quando o carro branco partiu, ficaram a mãe, Zezinho e Cininho aflitos abraçados no portão. Brad se esforçou e olhou-os pelo vidro da janela do carro com seus tristes olhos de “pidão”, como a lhes agradecer pela vida repleta de felicidade que lhe haviam proporcionado.

À noite, quando o pai voltou para casa, todos correram para rever o amigo, mas si encontraram o pai, com os olhos vermelhos de tanto chorar.

Brad não voltaria mais para casa. Pela primeira vez os meninos experimentavam a dor da perda. A perda do melhor amigo.

O pai explicou-lhes que a morte faz parte da vida, e que Brad tinha cumprido sua maior missão, que era de ter-lhes feito muito felizes. A mãe lhes disse que ele deveria estar agora vivendo no “Céu dos Cachorros”, onde se tem muitos ossos para roer, muitas bolas para brincar, e onde os anjos andam de bicicleta o tempo todo. Lembrou-lhes ainda que um pedacinho de Brad estava em cada um de seus filhotinhos, que logo teriam seus filhotinhos e assim, em breve, teria uma multidão de Brads por aí.

Naquela noite, ninguém teve fome e todos foram mais cedo para suas camas, não para dormir, mas para chorar sua dor.

E a lembrança daquele cachorro amigo, alegre, brincalhão e atrapalhado percorreria cada cômodo da casa por muitos anos, mas ficara impregnada eternamente no coração de cada um dos membros daquela família.

E se a fada madrinha pudesse transforma-lo em pessoa, certamente seria um homem íntegro, honesto, fiel, leal e, acima de tudo, um amigo de verdade.


Mas se entre as pedras dos jardins surgissem fadas madrinhas com seus mágicos poderes de fazer o impossível, eu pediria, do fundo de meu coração, que trouxesse o Brad de volta.

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